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Pesquisa GPOPAI: “O mercado de livros técnicos e científicos no Brasil”

O GPOPAI (Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação, da EACH/USP) publicou recentemente o relatório de uma pesquisa realizada por eles. O tema é “O mercado de livros técnicos e científicos no Brasil: subsídio público e acesso ao conhecimento”. O texto integral do relatório está disponível aqui. É um trabalho inédito e de peso, recheado de dados empíricos relevantes para discutir esse setor (bem como o tema dos direitos autorais de maneira geral), e com recomendações objetivas de políticas públicas para a área.

Da introdução do relatório:

Ao longo de 2007, o [GPOPAI] realizou estudos empíricos para obter dados que permitissem melhor avaliar o alcance do subsídio público à produção do livro técnico-científico e as barreiras de direito autoral que se interpõem entre essa produção e o público. Esses estudos buscaram medir o grau de financiamento público na produção industrial do livro (por meio da imunidade tributária), na geração de conteúdos (por meio do financiamento das pesquisas científicas) e na própria atividade editorial (por meio das editoras públicas).

Alguns dos resultados foram surpreendentes, mostrando, de maneira geral, que o livro técnico-científico é, em enorme medida, produzido a partir de pesquisas financiadas com recursos públicos. Além disso, parte da sua produção industrial é subsidiada diretamente pelo Estado por meio de editoras universitárias e, como um todo, altamente subsidiada por uma política estatal de imunidade tributária. Não obstante esse cenário, o Estado tem criado poucas políticas de acesso público à informação que subsidia e tem defendido com pouca força o controverso direito de acesso garantido pelas limitações na nossa lei de direitos autorais. É nossa ambição que esta pesquisa contribua para a mudança deste cenário, sugerindo modificações na lei de direito autoral e políticas para garantir o acesso ao conhecimento nas universidades, escolas técnicas e em centros de pesquisa públicos.

O relatório refere-se à parte já realizada da pesquisa, que é mais ampla (abrangerá também livros didáticos e softwares). Do site do grupo:

A hipótese da pesquisa, a ser testada, é que a maior parte da produção científica protegida por direitos autorais é financiada com recursos públicos e não adota uma política de acesso aberto. Desta forma, o público pagaria duas vezes pelo conhecimento científico: pagaria para produzi-lo por meio das universidades, institutos de pesquisa e agências de fomento públicas e pagaria para ter acesso a ele comprando as revistas, os livros e os softwares.

(O Sérgio Amadeu e, em especial, o Observatório do Direito à Comunicação também publicaram comentários interessantes sobre o relatório.)

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Resumo das palestras do seminário no IEEI

Foi dito que em breve o IEEI publicará (num livro e em seu site) os artigos apresentados no seminário sobre propriedade intelectual. Quando isso ocorrer, avisarei aqui.

Deixo abaixo o meu resumo das palestras, para quem quiser selecionar as de maior interesse. Recomendo particularmente os textos da Olgária, do Laymert (ambos fizeram palestras densas, e certamente os artigos estarão à altura) e da Marilena Lazzarini (este, em co-autoria com dois outros advogados do Idec). Logo porei aqui no blog o texto meu e do Imre Simon, que recomendo por uma razão mais egoísta: seus comentários muito nos interessam.

  • Gilberto Dupas abriu o seminário com um panorama sobre as tensões da propriedade intelectual no mundo globalizado. Apresentou três estratégias possíveis para os Estados pobres: buscar flexibilização das leis e tratados internacionais; copiar (isto é, ignorar a propriedade intelectual); e escolher nichos tecnológicos. Segundo ele, o ideal talvez seja um misto das três — a exemplo da China, que entra na OMC justamente para influir sobre as restrições que a afetarão.
  • Bertrand Warusfel falou da globalização do capitalismo e das adaptações que provocou na propriedade intelectual. Segundo ele, os direitos de propriedade intelectual passaram a funcionar internacionalmente (da Convenção de Paris, em 1883, até Trips — o passo mais importante na internacionalização —, em 1994), e tiveram seu papel econômico alterado, pela centralidade atual dos bens intangíveis. Ele entende que o droit d’auteur (a tradição francesa de direito autoral), que era fundamentado na proteção ao indivíduo (direitos morais), passou a ser governado prioritariamente pela proteção ao lucro (direitos patrimoniais). Comentou a proteção de software por direitos autorais (que nivela droit d’auteur e copyright, pois quase não prevê direitos morais) e a mudança no uso das patentes (passaram a ter função ofensiva, para barrar competidores; estratégia facilitada pelos altos custos dos procedimentos legais), e criticou a onda de criminalização das infrações à propriedade intelectual (lembrando que copiar um livro é muito distinto de falsificar em escala industrial, por exemplo).
  • Olgária Mattos falou, segundo ela mesma, mais sobre o sonho que sobre a realidade. Foi uma palestra extremamente erudita, que abordou autores como Benjamin e Adorno para mostrar como o conhecimento vem perdendo o sentido coletivo que o marcava desde a Antiguidade.
  • Laymert Garcia dos Santos apresentou a estratégia subversiva de patenteamento seguida por Buckminster Fuller, e argumentou que a vida dele foi um experimento a demonstrar como já era possível, no século passado, uma carreira científica baseada não na competição, mas na disseminação do conhecimento. Comentou contribuições de James Boyle e Deleuze para esse tema, e previu que o progressivo “travamento” trazido pela propriedade intelectual poderá levar a um inesperado conflito entre a tecnociência e o capital global, que passarão a ter lógicas de aceleração conflitantes.
  • Imre Simon apresentou o texto de que fui co-autor, e que fala dos conflitos entre propriedade intelectual e produção social (na definição de Yochai Benkler). O artigo apresenta o conceito de commons intelectual, e enfatiza a necessidade do desenvolvimento de uma linguagem desse commons para que seja possível defendê-lo.
  • Marilena Lazzarini trouxe os resultados de pesquisa feita pela Consumers International, e que mapeou a implementação do Trips (tratado no âmbito da OMC que exige um piso mínimo de leis ligadas à propriedade intelectual) em países da Ásia. A maioria foi mais realista que o rei: implementou exigências mais restritivas, e não lançou mão das flexibilizações permitidas. Comentou que em breve divulgarão pesquisa similar em relação ao Brasil; quanto à nossa lei, criticou o impedimento à cópia integral para uso privado, bem como outras restrições que a caracterizam como Trips-plus (ou seja, mais restritiva do que o mínimo exigido em Trips).
  • Alexandre Gangeiro substituiu Paulo Roberto Teixeira, e falou sobre o impacto das negociações de patentes farmacêuticas sobre os gastos públicos em remédios para tratamento de Aids. Criticou o não-uso das licenças compulsórias pelo Brasil (também previstas em Trips), mas acrescentou que o enfraquecimentos das indústrias estatais tem sido um problema ainda mais sério.
  • Eduardo da Motta e Albuquerque fez uma palestra densa sobre o conceito de sistema de inovação (o arranjo institucional entre os “atores” ligados à inovação tecnológica, como empresas, universidades, aparatos legais etc.), e apresentou os resultados de sua pesquisa, que identifica correlações entre produção científica e tecnológica. Em linhas gerais, ele sugere que os países distribuem-se em três grupos: o primeiro, dos países mais pobres, em que praticamente não há correlação (isto é, por mais que aumente a produção científica, a tecnológica não cresce); o segundo grupo, intermediário (em que se encontra o Brasil); e o terceiro grupo, dos países mais ricos, em que há correlação intensa (leve aumento na produção científica resulta em grande aumento na produção tecnológica). Ele identificou o efeito “rainha vermelha” no caso do Brasil (por mais que avancemos, não chegamos perto do terceiro grupo), e recomendou que o sistema de inovação seja associado a um fortalecimento da democracia e do sistema de bem-estar social.
    Nota. Essa apresentação levantou uma interessante polêmica metodológica: questionou-se a utilização do número de patentes como índice de inovação. (É um questionamento válido: as grandes empresas têm partido para uma “guerra fria patentária“. Acumulam patentes apenas com o intuito de barrar a competição; outras empresas e escritórios de advocacia compram patentes apenas encontrar e processar eventuais infratores, e não para produzir bens. Veja-se, como exemplo, as ameaças — até agora vazias — da Microsoft em relação a infrações de patentes pelo GNU/Linux. Isso naturalmente infla os números de patentes em países ricos, mas não significa que a inovação esteja aumentando proporcionalmente; muito pelo contrário.) O Dupas sugeriu que a inovação extrapola o avanço em patentes, ou mesmo o avanço científico; e que depende também de importantes raízes sociais e culturais.
  • José Manuel Quijano também falou do conceito de sistema de inovação, mas ressaltou a necessidade de buscar uma estratégia diferenciada para os países pobres, que mitigue as dificuldades impostas pelo atual sistema de patentes à inovação. Entre essas dificuldades, destacou a secretização das informações, a ampliação do escopo de patenteabilidade, e a dependência de patentes de países ricos. Sugeriu a necessidade de um papel ativo do Estado, mas, diferentemente do Eduardo da Motta e Albuquerque, recomendou que no âmbito interno os Estados afrouxem a legislação de patentes.
  • Claudia Chamas apresentou o programa de um curso de pós-graduação sobre propriedade intelectual (segundo ela, o primeiro no Brasil), organizado pela rede Minds. O curso é focado em estratégias de inovação e políticas públicas que contemplem tanto o desenvolvimento como a redução da pobreza.
  • Maristela Basso fez uma palestra razoavelmente didática (mas não por isso menos inquietante e articulada) sobre a agenda atual dos foros internacionais que discutem propriedade intelectual (OMC, OMPI e OMS). Segundo ela, os países pobres acreditavam que, com a assinatura dos tratados da OMC (Trips inclusive), haveria uma aquiescência por parte dos países ricos. O que se viu foi o contrário: os países ricos não se satisfizeram com a mera implementação de Trips (que já era comprometedora, principalmente por ampliar o escopo de patenteabilidade), e batalham por proteção cada vez maior à propriedade intelectual. Buscam também aumentar essa proteção em acordos bilaterais e regionais — o que complica ainda mais a situação, pois, pela chamada cláusula da nação mais favorecida (que compõe os tratados da OMC), os acréscimos desses tratados são automaticamente válidos para todos os membros da OMC. Apontou também que, como não temos claro no Brasil qual é o grau de proteção á propriedade intelectual necessário para a nossa realidade, não temos uma agenda a propor que faça frente à agenda dos países ricos. Concluiu com a seguinte metáfora: no passado, enxergava-se a propriedade intelectual como um direito privado, individual, fundamental; mas a realidade de hoje é outra: a propriedade intelectual tornou-se uma ilha de direitos privados cercada de um mar de direitos públicos, todos desfavorecidos — a liberdade de imprensa, os direitos humanos, a liberdade de concorrência etc.
  • Konstantinos Karachalios iniciou sua apresentação admitindo um paradoxo do sistema: por um lado, ele não leva automaticamente à eliminação das desigualdades e ao desenvolvimento; por outro lado, se for conduzido conscientemente a esses fins, ele também falha: pois o padrão atual de consumo dos EUA e da Europa não é sustentável no mundo todo. Comentou, com dados interessantes, a estratégia de “chutar a escada” utilizada pelos países ricos em relação à propriedade intelectual; e lembrou que, na prática, os EUA tem “jurisdição” global nessa área, pois todos olham para as leis e cortes estadunidenses como tendências que eventualmente serão seguidas. Sugeriu que, já que seria muito difícil renegociar os tratados, é possível conseguir ajustes significativos na proteção à propriedade intelectual modificando o funcionamento administrativo dos escritórios de patentes.
  • Roberto Jaguaribe falou com muita desenvoltura, e frisou a idéia de que a propriedade industrial é um mecanismo artificial, pragmático, e não deriva de um direito natural. (Ao contrário, segundo ele, do direito autoral, que teria mais base em direitos naturais; se o Vaidhyanathan tivesse vindo ao debate, a coisa esquentaria: ele entende que os direitos autorais também são mecanismos pragmáticos, no que eu o endosso.) Comentou vários enganos e distorções do sistema atual: o indicador de inovação mais utilizado (o número de patentes registradas nos EUA) revela apenas o grau de inserção daquele setor na globalização, e não a sua inovação; a idéia de que a pirataria é um mal absoluto (isso varia: a pirataria na China sem dúvida incentiva o desenvolvimento tecnológico, por exemplo; e foi muito útil para os países ricos, no passado); o rompimento da fronteira descoberta / invenção, que já é um fato (é possível patentear um código genético, que é muito mais descoberta que invenção). Comentou também os arremedos no direito autoral: a proteção de softwares por 70-120 anos, os direitos conexos, os direitos de broadcast. Segundo ele, essas distorções já afetam os próprios países ricos, aumentando dramaticamente o rentismo e a litigação.

(Créditos: a Angela, que também esteve no seminário, ajudou a redigir este resumão.)

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Destaques do seminário no IEEI

O seminário sobre propriedade intelectual promovido pelo IEEI foi muito bom, mesmo com a ausência do Siva Vaidhyanathan, que estava doente. Algumas coisas que me chamaram a atenção:

  • a despeito da diversidade dos participantes, houve um consenso significativo de que mais propriedade intelectual não conduz necessariamente a mais desenvolvimento. Também houve mais intervenções a apontar as dificuldades que a propriedade intelectual introduz para o desenvolvimento e os direitos humanos, que o inverso. Foi uma surpresa, apesar do próprio título do seminário já falar em “tensão”.
  • Esse consenso foi ainda maior quando se falava de patentes. Outra surpresa para mim, que estou mais acostumado a essas afirmações no cenário do direito autoral. Alguns dos palestrantes mais especializados em propriedade industrial mencionaram que há setores em que os próprios empresários são contrários às patentes; segundo o Konstantinos Karachalios, do Escritório de Patentes Europeu, a Mercedes-Benz passou anos sem registrar nenhuma patente na Europa — e não por falta de inovação, mas por uma decisão estratégica.
  • O tema definitivamente requer uma abordagem interdisciplinar. Ficou claro que não dá para abordar a questão apenas de um ponto-de-vista econômico e ignorar o tema dos direitos humanos, por exemplo. Da mesma forma, não dá para ignorar os desafios introduzidos pelas mudanças sociais e tecnológicas: isso gera arremedos, como a proteção dos softwares sob o direito autoral (que resguarda por 70-120 anos um código que em 5 anos já está ultrapassado). E por aí vai; a relação entre as diferentes disciplinas que tratam dessa área certamente é um dos focos da “tensão” que deu nome ao seminário.
  • “Devemos explorar as flexibilidades dos tratados internacionais sobre propriedade intelectual — mas será muito difícil retroceder nesses tratados”. Não sei até que ponto concordo com essa visão, mas palestrantes com bastante tarimba nessa área — como a Maristela Basso e o Konstantinos Karachalios — deram a entender que Trips (o tratado da OMC que exige patamares mínimos de proteção à propriedade intelectual), por exemplo, já deve ser encarado como um dado do problema. Isso é desanimador; pois, como mencionou o Pablo Ortellado, que esteve no seminário, Trips está longe de ser ideal. (Já quanto ao uso das flexibilidades, concordo plenamente.)
  • Os advogados soaram uníssonos em um ponto (ainda que em outros tenham divergido bastante): quanto à propriedade intelectual, melhor uma lei ruim do que lei nenhuma. (Bem kantiano. Eu tendo a discordar, mas reconheço que o Bertrand Warusfel deu um argumento forte: se não há o poder da lei, o único poder que resta é o do dinheiro, do livre-mercado. Me pergunto se esse raciocínio é a unanimidade entre os advogados, e se o aplicam para outras áreas também.)
  • Curiosamente, pareceu-me que nesse seminário os advogados foram mais críticos ao sistema de propriedade intelectual que os economistas — de certa forma contrariando o dito lembrado pelo Roberto Jaguaribe: “a propriedade intelectual é a vitória dos advogados sobre os economistas”.

Logo mais postarei um breve resumo das palestras do evento.

 

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