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Sobre as propostas de Bolsonaro para EaD (e educação em geral)

Trabalho bastante na área de educação à distância, ou EaD: sou doutor em Educação (com publicações em áreas relacionadas) e professor na UFABC, onde leciono cursos sobre EaD (e em modalidade EaD), e onde atuo como coordenador adjunto do setor responsável por EaD na instituição — o NTE/UFABC. Em função dessa proximidade, senti a importância de fazer uma análise das propostas de Bolsonaro sobre o tema, que considero extremamente problemáticas. Elaborei e publico essa análise na minha condição de cidadão, e ela não tem nenhum vínculo com minha instituição.

Não faz sentido apostar em EaD na educação primária

A proposta sobre EaD de Bolsonaro que se tornou mais conhecida é a de adotar essa modalidade a partir do ensino fundamental. Em todo o mundo, o investimento público em EaD nessa etapa é raro e proporcionalmente muito pequeno; isso tem razões óbvias, e que são ainda mais relevantes em um país como o Brasil.

Em primeiro lugar, a tarefa fundamental da educação não é a mera transmissão de conteúdo, mas sim a formação plena do indivíduo. Isso inclui sua capacidade de socialização (dialogar, compartilhar, respeitar regras e diferenças), cujo aprendizado é particularmente importante para crianças e adolescentes. Por mais que algumas abordagens de EaD favoreçam a socialização, o ensino presencial bem conduzido ainda é imbatível nesse sentido — ainda mais para o aprendizado inicial dessa capacidade, entre crianças e adolescentes.

Em segundo lugar, a EaD moderna requer uma infraestrutura tecnológica significativa: computadores, celulares, conexão a internet etc. Na esmagadora maioria das escolas públicas, essa infraestrutura é insuficiente ou ausente; e que dizer de tal infraestrutura nas casas dos alunos, então — situação que é ainda pior nas regiões mais pobres do país.

Em terceiro lugar, a EaD de boa qualidade também requer que os estudantes (e professores) possuam uma grande quantidade de conhecimentos e habilidades prévias: não só a língua escrita, mas também a fluidez para se expressar em registros diversos (fóruns, e-mails, postagens, vídeos); não só o uso do computador, mas também o domínio da navegação na internet e de softwares diversos, incluindo o AVA (ambiente virtual de aprendizagem) utilizado. É evidente que os alunos da educação primária ainda não possuem a maioria desses conhecimentos, e — outra vez — isso é ainda mais verdadeiro entre os mais carentes.

Em resumo, a EaD tende a ser pouco adequada para essa etapa, e demandaria investimentos muito altos (e de baixa eficiência) em um país como o Brasil.

EaD de qualidade não é “padronizada”, e sim plural

Se ainda assim o governo quisesse adotar EaD na educação primária, como propõe o candidato, a única maneira de viabilizar isso a curto prazo (ainda mais com os investimentos em educação congelados pela “PEC do teto” de Temer, apoiada pelo candidato) seria usando modelos de EaD que sacrificam drasticamente a qualidade do ensino. Esses modelos costumam incluir as seguintes estratégias:

  • uso de infraestruturas tecnológicas mais simples e disseminadas (como a TV e o rádio), e aumento do número de estudantes para cada professor, o que em ambos os casos reduz a interação (dos estudantes entre si, e dos estudantes com professores);
  • transmissão de aulas ou materiais educacionais no modelo broadcast (enviados de forma centralizada, por meios de comunicação massivos e de baixo custo, como TV e rádio);
  • uso de aulas e materiais educacionais padronizados (o que diminui custo de produção, mas tem efeito brutal na qualidade, pois impede a adequação para as realidades locais).

As declarações de Bolsonaro sobre o tema sugerem que esse seria o caminho adotado. Com efeito, em entrevista à Globo News, ele defendeu sua proposta de EaD da seguinte maneira (em todas as citações, os grifos são meus):

ao ter, por exemplo, um dia por semana esse ensino à distância, [você poderia] padronizar no Brasil algumas matérias.

Os estudos na área de educação à distância vão na contramão dessa proposta, e mostram que o diálogo, a interatividade e a pluralidade são (como na educação presencial, em grande medida) fundamentais para a qualidade do ensino. E isso vale inclusive para áreas como matemática e ciências; para que alunos aprendam, é de suma importância que se use exemplos e linguagem adequados às suas regiões e culturas, e que o material didático e as aulas possam ser adequados ao nível e às necessidades de cada contexto; em ambos os casos, o oposto da padronização centralizada. Os professores locais são insubstituíveis para identificar essas características e fazer a mediação necessária; sem garantir-lhes liberdade para planejar suas aulas, selecionar e adaptar os materiais mais adequados — liberdade para ensinar, enfim —, não é possível fazer educação de qualidade.

EaD não “combate marxismo” (e nem deveria)

A justificativa de Bolsonaro para essa proposta de massificação da EaD, no entanto, não está fundamentada na qualidade do ensino, mas sim no combate à “doutrinação” que ele supõe caracterizar a educação brasileira. Veja-se o contexto da sua fala citada acima, bem como outra entrevista recente:

Nós temos hoje em dia uma certa doutrinação nas escolas. Você poderia, ao ter, por exemplo, um dia por semana esse ensino à distância, padronizar no Brasil algumas matérias. [Entrevista à Globo News]

Conversei com um grego em São Paulo. Gostei muito do [método de] ensino a distância dele. Você ajuda a combater o marxismo. Pode começar por um dia por semana, para baratear. [Entrevista coletiva em agosto]

Para início de conversa, não faz nenhum sentido dizer que uma modalidade de ensino (a EaD) “combate” uma escola de pensamento. A EaD não tem tais propriedades mágicas: seria como afirmar que “conversar por e-mails combate o racionalismo”, ou coisa que o valha.

E, mais importante ainda, é só ler nossa constituição para saber que não é tarefa da educação “combater o marxismo”:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino

Surpresa: quem quer fazer doutrinação é… Bolsonaro

E se Bolsonaro quer a EaD para “combater marxismo”, que objetivo ele enxerga na educação de forma geral? Que tipo de indivíduo ela deve formar? Ele responde neste trecho da já citada entrevista à Globo News:

O que eu quero é salvar as universidades e os nossos jovens, para que na ponta da linha, eles sejam um bom empregado, um bom patrão, um bom liberal.

Em suma, Bolsonaro quer que escolas e universidades formem “bons liberais”: que alunos estudem e se moldem às ideias de uma única escola de pensamento, o liberalismo. Nada de garantir a efetiva liberdade de pensamento, ou que estudantes sejam expostos ao “pluralismo de ideias”, como exige a constituição; nada de formar cidadãos críticos, capazes de pensar por conta própria: só devem ser “bons liberais”.

Reparem que o problema nisso não é a escolha pelo liberalismo em si; na minha formação, tive bons professores que ensinaram sobre marxismo, e outros — também bons — que ensinaram sobre liberalismo (e uma maioria que ensinou sobre outras coisas ainda). Não se trata aqui, enfim, de julgar o mérito de uma ou outra escola de pensamento: mas de reconhecer que se um presidente quer combater o ensino sobre uma delas, e padronizar matérias para garantir que os estudantes sigam uma outra… isso sim é doutrinação. Doutrinação muito mais certa e evidente do que a que Bolsonaro imagina existir hoje (quando não há matérias padronizadas, nem proibição ao ensino de certas escolas de pensamento).

EaD no Brasil: “recusas dogmáticas” ou desconhecimento da realidade atual?

Para concluir, vale abordar o que o plano de governo do candidato (curiosamente organizado à moda de uma “apresentação de PowerPoint”) diz sobre EaD (p. 46):

Educação à distância: deveria ser vista como um importante instrumento e não vetada de forma dogmática. Deve ser considerada como alternativa para as áreas rurais onde as grandes distâncias dificultam ou impedem aulas presenciais.

Ora, mas no Brasil de hoje a EaD não é “vetada de forma dogmática”; pelo contrário: desde 2006, o MEC conduz um programa bastante ambicioso nessa área, o Universidade Aberta do Brasil (ou “sistema UAB”). Voltado à formação profissional (principalmente para professores da educação básica) e de nível superior (graduações, especializações e mestrados profissionais), ele envolve mais de 100 instituições de ensino e centenas de polos presenciais em todos os estados do Brasil (veja neste mapeamento), que oferecem 750 cursos para mais de 200 mil estudantes atualmente matriculados (a fonte dos números é este documento da CAPES). Embora o programa também funcione como “alternativa para áreas rurais”, consegue ir além disso: um levantamento identificou que a UAB já teve alunos de mais de 65% dos municípios brasileiros — capilaridade impressionante que foi alcançada em pouco mais de uma década.

Em tempo: quando o sistema UAB foi criado, em 2006, o ministro da Educação era Fernando Haddad.

 

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Declaração de voto

Tenho pensado que é cada vez mais importante conversarmos sobre a situação política do país, e nos posicionarmos de forma clara, mas tranquila: para enfrentar tanto a apatia como a polarização sectária. Por isso, este ano resolvi registrar aqui minhas reflexões e escolhas para a eleição de 2018.

Parênteses: (sub-)representatividade

Um dos critérios que tem sido cada vez mais importante nas minhas escolhas nas eleições é o da importância de elegermos pessoas de grupos discriminados, e que (não por coincidência) são sub-representados nos espaços de poder e tomada de decisão: particularmente, mulheres, pessoas negras e LGBTs. Sem deixar de considerar o alinhamento ideológico e a estratégia política, tenho privilegiado quem é de pelo menos um desses grupos. A maioria dos meus votos é para o PSOL — em grande parte pela afinidade com minha visão política, mas sem dúvida também porque é um partido que tem boa representação de mulheres, negros e LGBTs, com muitos bons quadros e candidatos desses grupos.

Deputada federal

Começo pelos parlamentares: acredito que, ganhe quem ganhar a eleição presidencial, um parlamento mais progressista será essencial para os próximos anos.

Pra Federal, votarei na Sâmia Bonfim. Ela é feminista, foi uma ótima vereadora em São Paulo, e faz parte de uma geração combativa, que na minha opinião merece entrar com tudo na política representativa. Fiquei bastante dividido entre votar nela e no Douglas Belchior (também do PSOL), que tem uma candidatura e trajetória muito sólidas, pautadas nas questões das periferias e da população negra — mas na escolha final pesou a densidade e amplitude do programa da Sâmia, que me impressionou muito.

Também votaria na Luíza Erundina (mas acho que ela já vai se eleger) e no Paulo Teixeira (que vem tendo atuação importante em favor da educação pública e dos direitos na internet), do PT.

Deputada estadual

Vou votar na Ana Mielke. Ela tem uma longa trajetória junto ao Intervozes, um coletivo político seríssimo (cuja atuação eu acompanho desde o começo da década de 2000), e que milita pela democratização da comunicação, uma das áreas mais estratégicas para transformarmos o Brasil (não é por acaso que ela é uma das únicas candidaturas que eu vi falar sobre software livre no setor público). Aqui também fiquei dividido, pois descobri recentemente uma candidata que me pareceu muito merecedora de voto, a Hailey Kaas; ela tem propostas boas sobre direitos das LGBTs e das mulheres, e articula isso a uma visão política mais ampla. Na última eleição votei em outra candidata mulher trans (a Luiza Coppieters), e espero que a Hailey consiga ser a primeira pessoa trans a se eleger para a assembleia.

Votaria também no Adriano Diogo, do PT, que foi um parlamentar fundamental na Alesp para que os casos de estupro na Medicina / USP fossem levados a sério; e gostei bastante da proposta de candidatura coletiva da Mônica da Bancada Ativista.

Senador

Meu primeiro voto é para o Eduardo Suplicy. Acho fundamental mantermos um senador de esquerda por São Paulo, e o Suplicy é comprometido com causas importantes, além de ter uma bela trajetória parlamentar.

Meu segundo é para a Silvia Ferraro. Votaria também (sem pestanejar) no Daniel Cara; ambos têm trajetórias admiráveis na defesa da educação, mas aqui pesou meu critério de representatividade de gênero.

Presidente

Em toda a minha vida, nunca tivemos uma situação como a atual: entre os primeiros das pesquisas, temos um candidato que não tem nenhum pudor de fazer abertamente declarações homofóbicas, machistas, racistas, além de defender a ditadura de 1964 e a tortura. Por conta disso, para os meus conhecidos que não são de esquerda, eu tenho sugerido que votem em qualquer candidato, mas n’#elenão.

Meu voto será para o Guillherme Boulos. O PSOL não é um partido perfeito, mas é com a visão e as propostas dele que tenho mais alinhamento ideológico: por um lado, a crítica radical da desigualdade (o grande problema do nosso país, e da grande maioria das sociedades capitalistas), e do uso do estado para atender os interesses dos mais ricos e poderosos; e por outro, a defesa dos direitos humanos, da ampliação das formas de participação popular na democracia, e de uma concepção de estado e organização da economia que coloquem os pobres e trabalhadores — os 99% que realmente produzem a riqueza — em primeiro lugar, com respeito ao meio ambiente e os povos tradicionais. Acho muito importante fortalecer essa parcela da esquerda socialista, que não teme dizer seu nome, nas palavras do Safatle.

Optei por não fazer “voto útil”, principalmente porque tudo indica que teremos um 2o. turno (e com o Bolsonaro contra um candidato progressista com chances de ganhar); mas cogitei, e nesse caso consideraria Ciro, Haddad e a Marina como opções; também vejo méritos nessas candidaturas, mas só votaria nelas no raciocínio de voto útil, pelos problemas que vejo em cada uma delas (respectivamente: o aprofundamento que Ciro traria aos problemas trazidos pela agenda desenvolvimentista, ainda mais com Kátia Abreu; as limitações do PT, como partido que abriu mão de muitas pautas e princípios para buscar hegemonia; e o distanciamento da Marina de lutas centrais da esquerda, em nome da pacificação).

Governador

Meu voto é para a Lisete Arelaro. Conheço ela desde os meus tempos de FE-USP, quando pude ver de perto que ela tem um acúmulo muito grande na área de políticas para a educação, além de muito engajamento político, demonstrado desde a sua resistência à ditadura.

 

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